foto: JOÃO MILET MEIRELLES |
Caríssimos e caríssimas, todos e todas do Bando:
Ainda estou em estado de êxtase. De que lhes falo? Da oportunidade singular que Auristela – e citar Auristela é citar o Bando – me proporcionou. De repente, desses momentos que são gestados no Orun, a voz de Auristela ao celular, querendo que eu fosse ver vocês em cena. Fui e ainda levei o outro “bando” que costuma me acompanhar.
Logo de início, aquele arrebatamento do começar diferente: ambiência de luz quebrada, som que parecia barulho das ondas do mar no bojo de um navio negreiro. Era a travessia da realidade para o sonho, mas também da fantasia para verdade que estava começando. Mulheres e homens de idades diferentes, cada um em seu lugar, mas todo mundo com indumentária parecida: era a realidade da vida – os humanos na existência – que era chamada à cena.
O som assumiu outra gradação, instrumentos foram se adicionando. De repente, olhe eles ali, também: os recursos da tecnologia moderna integrando o fazer e o saber dos negros. E aí começou: os mais velhos sendo chamados para dizerem do seu saber, para nos ensinar a atravessar a existência com mais humanidade. Na arena, o primeiro deles, o poderoso Pai da Criação, vergado em dois, no corpo dos homens e das mulheres, em plena arena da criação. E lá se foi ele que, sendo um, é múltiplo... Na tela, a mais velha, Macota Valdina, desvendando o saber de como aprender viver...
E aquele recurso do mais velho falando em imagens projetadas em paredes opostas. Simplesmente fantástico! E mais, um tempo descompassado que trazia uma multiplicidade de vozes formada por uma única voz. Mais tarde, a mais velha e o mais velho falando simultaneamente, E platéia ensandecida no apuro dos ouvidos acostumados à sequência do narrar dos brancos com princípio, meio e fim. Onde está o princípio? Cadê o meio? Onde está o fim? Nada disso; é tudo junto… Vozes na arena, vozes nas projeções, vozes, vozes, vozes...
Ah, e aqueles vivos (mais jovens) carregando os ancestrais nas costas? Me vi no meio de vocês, carregando Vó Mejigã, Vó Maria Figueiredo, Tia Luzia e Tia Jovanina. No carrego delas, o carrego de meu povo tribal vindo de Ilexá. Aqui pra nós: fiquei imaginando aqueles atores e atrizes, vergados ao meio, carregando o peso do corpo do outro e ainda cuidar da técnica de teatralizar: o ritmo, a pausa, a voz, o respirar, o caminhar encurvado: meu Deus!
E vocês nem se esqueceram da voz dissonante que copia os brancos: o homem gritando “velho é pra ir pra o abrigo!”; a mulher gritando “Deus é injusto, levou meus dois filhos!” E na dissonância dessas duas vozes a diferença abismal entre o saber e o modo de interpretar o universo e vida entre negros e brancos. São essas diferenças que o sistema branco sempre rejeitou em nós, no excesso de sua branquitude: Deus é branco; o filho de Deus é branco; a mãe do filho de Deus é branca; os anjos são brancos e a brancura é do Reino do Ceu. Enquanto isso, o Cão é preto etc, etc...
A surpresa maior, no entanto, foi reservada para o momento derradeiro de vocês na arena. Macota Valdina foi falando do Tempo, foi falando em voz pausada, em frases curtas... E quando ela se calou e a gente procurou vocês... Cadê vocês?! Tinham ido embora... É assim mesmo que a Vida/Morte faz: quando a gente dá cor de si, a arena da vida está vazia. Lá se foi o ente amado, lá se foi a juventude, lá se foi o emprego, o casamento, o caso, o amor, lá se foi a própria existência... Ficou a esperança do costumeiro: “Vão voltar pra receber os aplausos...” E aí, nada aconteceu. Como recuperar a palavra depois de proferida, a pedra depois de atirada, a bofetada depois de dada, a vida depois de finda?
E a platéia, assim, apilolada, desamparada de si mesma, ficou sem saber o que fazer, tal qual todo mundo fica, quando se depara com a Verdade: emudecida, atordoada por descobrir que a Verdade tem outras verdades. E me deu uma vontade maluca de ocupar o centro da arena e deixar meu Sentimento falar bem alto de nossas coisas, nossas vidas, nossas verdades. Isso, porém, seria impedir que o espetáculo cumprisse o seu papel. E ele devia ser a voz maior a ser recolhida nas profundezas de nós mesmos, para nos certificamos de como somos, os filhos dos ancestrais, divinos e maravilhosos. É só querer nos ver, nos ouvir, nos saber.
O melhor dos abraços de axé para vocês. E para a querida Auristela, o penhor de minha gratidão.
Ruy Póvoas
Um comentário:
Impressionante como 'Bença' rende bons textos, bons depoimentos. Parafraseando o querido Carlinhos Brown, só posso dizer que "quem tem santo é quem entende". Esse trecho da música “Obrigado, Axé” traduz muito do que é assistir Bença para quem viveu/vive e/ou cresceu em um terreiro de candomblé. Para quem ouviu as histórias dos mais velhos, para quem muitas vezes questionou certas coisas, mas depois acabou entendendo que certas coisas são assim e pronto (aquela velha história do ‘faz mal’, ninguém sabe por que, mas ninguém arrisca ir de encontro ao que um mais velho diz) e principalmente para quem aprendeu que dar a bença é muito importante e, como dizia minha avó, a bença é bom para quem recebe e não para quem a transmite.
A vontade é de sair gritando para o mundo inteiro ouvir quão boa é a peça e quanto a gente se identifica com ela.
Vai ficar super repetitivo, mas eu só posso AGRADECER (e farei isso mil vezes, se preciso) ao Bando de Teatro Olodum por mais uma peça maravilhosa e por mais uma oportunidade de reconhecimento.
Muito bom olhar para o palco e não ver aquela forma quadrada de fazer teatro!
*E Ruy, eu entendo cada linha que vc escreveu aí e assino embaixo de cada uma delas!
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