sexta-feira, 30 de abril de 2010

Chica Carelli e Áfricas


Veja aqui um trecho do texto escrito pela doutora em Letras, Fabiana Carelli Marquezini, sobre o espetáculo Áfricas em seu blog Flesh and Bone Writers.

Por Fabiana Carelli Marquezini

Ela era apenas um retrato na parede. Na casa de campo de meu tio: moça, traços delicados, cabelos longos. Francisca. A filha mais nova do Antônio, primo homônimo de meu pai, ambos Carelli. O pai de Francisca, pintor.

Nunca a tinha visto fora do retrato – e das histórias. Que tinha morado com a avó, D. Lourdes, depois da separação dos pais. Contava o que – nove, dez anos? Que tinha ido à Bahia, fazer Faculdade, e de lá nunca mais voltara. Que tinha se rendido ao teatro. E depois, com o passar dos anos, que ajudara a criar o Bando de Teatro Olodum. Lázaro Ramos falando dela na televisão, ou ela falando dele, pois ele começara a carreira ali, no mesmo palco de Salvador, sob a tutela da mesma Francisca. Ou melhor: nessa altura, ela já era a Chica – Chiquinha Carelli, como ele a chamou.

No sábado, 17 de abril, a moça de cabelos longos passou por mim como um pé de vento. Já não assim tão moça. Os cabelos curtos, meio grisalhos. Pequena mulher. Gestos amplos!... Passou, levantando poeira, casaco preto aberto, esvoaçante, e sumiu pela porta de vidro do SESC Vila Mariana rumo à rua. “É ela”, minha mãe disse, alvoroçada, “a Chiquinha!! Vamos lá falar com ela!”. “Eu não”, retruquei, toda tímida, “vamos esperar o resto da família chegar... Eles vão vir, com certeza!” E eles, é claro, vieram.

Costumo dizer que, onde tem um Carelli fazendo alguma coisa, os outros estão sempre lá, para prestigiar. Esse sempre foi o tipo de senso familiar admirável cultivado pela família de meu pai. Mas encontrar Chica Carelli nos bastidores do SESC naquela tarde de sábado, assistir ao trabalho de Chica naquele palco, foi muito mais que uma descoberta, digamos, “genealógica”.

Áfricas (2007) é uma das peças mais recentes do Bando de Teatro Olodum e a primeira dedicada “ao público infanto-juvenil”. Mas, como diz Lázaro Ramos – de novo ele, é algo que os adultos também precisam ver. Porque, como está no programa da peça, ela “traz à cena o continente africano, através da sua história, seu povo, seus mitos e religiosidade, abordando o universo mítico africano em uma tentativa de suprir a escassez de referenciais africanos no imaginário infantil, povoado de fábulas e personagens eurocêntricos”. O enredo é simples: à beira do porto, em Salvador, um grupo de adolescentes se reúne para contar “histórias” da África. Simples, mas riquíssimo: o resultado é simplesmente um ESPETÁCULO! Texto de Chica Carelli e do Bando de Teatro Olodum, a partir de leituras, seminário, discussões. Direção? Chica Carelli.

Em tempos de Lei 10.639/2003, isso não é pouco (e quem trabalha com África sabe bem do que estou falando...). O desconhecimento desse universo é gigantesco! e permeado de muito preconceito, de muito pressuposto, pretensão, pretexto, prejuízo, prevaricação, etc. etc. (me lembro do dia em que eu fazia uma conferência para 400 professores de todo o Brasil em Campinas, há dois anos, falando da obrigatoriedade de se falar em África instituída pela tal lei “supracitada” (rss): ninguém tinha ideia alguma de como conseguir os textos, de como aprender o que tinha de ser... ensinado!).

Mas Áfricas ainda é muito mais. A peça de Chica traz aos palcos uma perfeita mestiçagem de formas, em que histórias da mitologia africana são contadas com um sotaque muito brasileiro, uma brejeirice típica do lado de cá do Atlântico e uma malandragem... baiana, “nacional”. Os atores também encarnam isso: eles não fazem o tipo dos africanos (vou generalizar, mas vá lá: altos, esguios, um tom mais escuro de pele, um jeito mais formal de se portar, vestir e falar): são fortes, coloridos, produzidos, alegres – tipicamente... brasileiros! Áfricas é simplesmente macunaímico: uma rapsódia de lendas, formas e culturas, uma mistura de oralidades e escritas, apimentadas com um bom-humor próprio da brasilidade. É, pessoal: “a gente não vê isso todo dia”! :)

Ao mesmo tempo, a cenografia e a própria dramaturgia de Áfricas trazem à tona, sim, algo do continente africano, um pouco indefinível, mas que me remete a algumas das produções cinematográficas recentes da África de Língua Portuguesa. A marginalidade da infância em Na cidade vazia (2004), da cineasta angolana Maria João Ganga, mas sem sua tristeza. O colorido esfuziante e musical de Nha Fala (2002), do guineense Flora Gomes, mas sem sua ingenuidade política.

Para ler o texto integral, é só dar um clique aqui e conhecer o blog de Fabiana.

Fabiana é Doutora em Letras, crítica literária e escritora. Tem vários artigos, traduções e livros publicados. Como professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo desde 2004, estudou as obras de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa e de autores africanos de língua portuguesa como Luandino Vieira e Pepetela. Acabou de lançar Escrito nas Estrelas (Editora Rocco, 2010), em parceria com Horácio Tackanoo, livro do qual assina o texto.

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