quinta-feira, 4 de novembro de 2010

BENÇA, TEMPO!

*Por Jarbas Bittencourt

Ao completar 20 anos, o Bando de Teatro Olodum estreia Bença e encerra mais um ciclo de sua existência com um espetáculo impregnado pelo tempo.
 Pelos tempos idos e vindos! Pelos tempos de outrora e pelos tempos atuais! Por tantos e outros tempos contidos nos espaços finitos de nossas experiências. E, em particular, pelo tempo que percorremos durante o processo de construção dele em nós.
 Falar sobre Bença é falar sobre esse tempo e sobre o movimento das coisas através do qual ele a nós se apresenta.
Jarbas inspiração e harmonia musical à encenação teatral 'Bença'

Assim foi esse nosso tempo:
   
Era final de 2006. O Bando preparava um novo trabalho, realizando o antigo desejo de montar um espetáculo dirigido ao público infanto-juvenil. O já eleito governador Jaques Wagner convida o diretor Marcio Meirelles para compor o seu secretariado, levando a experiência adquirida à frente do Teatro Vila Velha para a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. Seria um tempo sem Marcio...
    
Chica Carelli e Márcio Meirelles em ensaio do espetáculo 'Bença'

Seguimos e, sob a direção de Chica Carelli, estreamos Áfricas em 2007. Naquele momento pós-estreia, decidimos nos inscrever no Edital da Petrobras para manutenção de grupos de teatro, cuja conclusão seria uma nova montagem. Lembramos de Respeito aos mais velhos, que era uma antiga ideia de Marcio que adaptamos em nosso projeto. Fomos contemplados!

Era a primeira vez que o Bando teria um patrocínio deste tipo. Os frutos foram bons. Com a Petrobras tivemos as condições necessárias para desenvolver um projeto de muitas etapas, que nos proporcionou oficinas de preparação, apresentação de nosso repertório, seminários, viagens e construção de novas parcerias.

Dentro e fora de Salvador, seguindo o que já é uma tradição do Bando em seus processos, muitos se envolveram nesse trabalho, a exemplo de D. Cici, ebomi do terreiro Ilê Axé Opô Aganju; Everaldo Duarte, diretor da Sociedade de Cultura Negra do Brasil (SECNEB); Jaime Cupertino, líder quilombola da Comunidade de Vazante, da Chapada Diamantina; e Raimunda da Paixão, moradora de Itiúba, no sertão baiano. Eles nos contaram estórias e histórias em seminários abertos a toda a comunidade.  

Outros também nos trouxeram seus saberes, como Ubiratan Castro, Jaime Sodré, Makota Valdina, Isabel Reis e a yalorixá Mãe Valnizia de Ayrá.

Por onde passamos com o projeto fomos bem recebidos e ganhamos outros parceiros que generosamente dividiram conosco seu tempo e deram sua colaboração para a formação de um tecido polifônico, que cada integrante do Bando ia guardando em si e nas filmagens que fizemos. O nosso interesse era ouvir e registrar conversas com os representantes mais velhos de comunidades marcadas fortemente pela cultura negra.  

O tempo de ir e vir até os lugares onde encontramos e conversamos com os “mais velhos”, cujo verbo nos serve de conteúdo e contracena, foram infinitamente menores que os tempos que percorremos ao escutá-los. Eles nos abriram suas vozes, o tempo nos contou sobre a vida...

E assim chegamos ao momento de iniciar a montagem, impregnados todos pelo conteúdo diverso e profundamente tocante das realidades apontadas por aqueles que se somaram a nós nessa empreitada.

O aniversário do Bando chegou em mais uma volta dada pelo tempo, que também motivou em Marcio o desejo de dirigir a peça e, desta forma, estar junto nessa celebração.

O processo seria um grande desafio por seus muitos compromissos como secretário de estado e pelo seu forte desejo de descobrir uma forma apropriada para a expressão do conteúdo coletado por nós, ainda que isso significasse uma ruptura com nossos modos de fazer.

Era preciso negociar com o tempo...

'Bença' é o resgate cultural da população afro-brasileira

O tempo do não-personagem; o tempo da dramaturgia não-narrativa; o tempo expresso pela simultaneidade mais que pela sucessão de eventos; o tempo não-cronológico; o tempo do desenvolvimento não-linear; tempo do ininterrupto; tempo da presença e da representação; tempo do atabaque e do pick-up; tempo dos discursos múltiplos formando um todo até certo ponto deixado em aberto; tempo da volta que ao mesmo tempo é ida! 

Negociamos também com a nossa noção de tempo para melhor entender os ritmos musicais relacionados aos orixás, voduns, inquices mais velhos que compuseram a pesquisa musical e coreográfica nesse processo. Guiados por Zebrinha, desaceleramos nossa percepção para mergulhar em outros tempos necessários à execução de movimentos e sons que buscam adentrar tempos diversos daqueles com os quais lidamos no dia a dia. 

 Essa investigação nos trouxe a uma estrutura que busca expressar o fluxo dos acontecimentos no tempo através da permanência. O instante não apresentado isoladamente. Os fatos não particularizados pelas estratégias de encenação. Um moto perpétuo verbal, sonoro e gestual. Um caminho novo batendo às portas de nossa percepção.

Nesses tempos em que falamos muito sobre ancestralidade, sondamos o passado longínquo para trazer o olhar mais treinado para o instante presente e, desta forma, reconhecer os nossos ancestrais mais próximos, a exemplo de D. Deni da Casa das Minas, de quem ouvimos muito a respeito da preocupação com a continuidade das tradições.

Temos todos a responsabilidade de levar à frente lutas que herdamos no momento em que reconhecemos nossa identidade no mundo.
   
*Jarbas Bittencourt é diretor musical do Bando de Teatro Olodum

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